O QUE EU VI / LI / OUVI
Os Segredos da Alimentação: O título em português do documentário produzido este ano para a Netflix, com base no livro da médica alemã Giulia Enders, é muito higiênico e não dá muito a ideia do assunto. A tradução direta do original é algo como “O Segredo das suas Tripas”, mas também toma certo cuidado para tratar do funcionamento de nossos intestinos, usando bonequinhos fofinhos para representar as bactérias que cuidam do nosso cocô. Mesmo quem já conhece o papel de “segundo cérebro” atribuído mais recentemente ao intestino vai encontrar algo novo na produção. Isso porque, enquanto mostra esse moderno conceito através de depoimentos de cientistas, o documentário acompanha quatro pessoas com problemas graves: uma chef pâtissière com tem medo de comer seus próprios pratos; uma estudante que abusou de fast food, foi mal medicada com antibióticos e acabou numa dieta absurdamente restrita; uma mãe de família que não consegue emagrecer; e um profissional de competições de quem come mais cachorro-quente, que inexplicavelmente não consegue mais ter fome. Só na parte final é que o diretor chuta o balde e mostra uma delas fazendo um esquema “ilegal” de transplante de fezes, com imagens fortes para quem tem estômago fraco. Mas não fique de merda e assista sim.
Dr Who: Especiais: Finalmente comecei a ver os mais recentes especiais de Dr Who, que trazem de volta a mais famosa encarnação do personagem, sob a pele de David Tennant. Ainda tentei assistir ao último episódio da 13ª temporada, para ver a versão feminina se regenerar. Mas como a Globoplay jogou tudo fora de seu acervo, tive que recorrer a youtubers para entender o que rolou nos episódios que não tive saco para acompanhar (sim, eu sonhava com uma primeira Doutora muito mais legal, em histórias mais criativas). Já dá para ver o dedo da Disney na produção da BBC, seja na melhora da imagem e efeitos, seja na representação de alienígenas. Deu vontade de assistir logo a tudo e embarcar no “reboot” com o 15º Doutor, o primeiro negro da galeria, já disponível na Disney +.
Recursão: Já que falei sobre um dos mais famosos viajantes do tempo da ficção (ok, não tem como ser viajante do tempo fora da ficção... ou tem?), aproveito para dar a dica sobre esse livro publicado pela Intrínseca. Até porque falei do autor, Blake Crouch, na última edição, ao comentar a adaptação de Matéria Escura. O livro traz uma das mais engenhosas formas de viagem no tempo que já vi, abordando coisas que geralmente são jogadas pra baixo do tapete nesse tipo de história, como as consequências na mente de quem viveu duas realidades, a atual e a que foi apagada quando alguém foi ao passado mudar algo. É uma daquelas histórias quem se contarmos demais, acabamos estragando a experiência. Basta saber que um policial está investigando uma série de bizarrices sensoriais em pessoas e acaba chegando a uma cientista que está bem arrependida de sua invenção. O legal é descobrir o tamanho dos eventos escondidos ao mesmo tempo que os personagens.
O Último Plano: Estreou esta semana o podcast do G1 sobre a criação do plano Real, com idealização e apresentação de Renata Ribeiro e roteiro de Valentina Castello Branco e Mariana Pinheiro. Cito as roteiristas porque dá para sentir o toque de storytelling diferente de uma simples narrativa jornalística. No primeiro episódio, que se reserva a retratar o caos nacional antes do Real, há um momento em que a apresentadora fala de um episódio pessoal que chegou a me preocupar, por não parecer fazer sentido na “trama”, mas que se paga mais à frente, se conectando com um dos planos que não dão certo, o mais traumático deles, aliás. Vale acompanhar.
Newsletter do Beto Silva Extra: O mais literário dos cassetas (tenho três livros dele) resolveu contar a história do lendário grupo Casseta & Planeta, desde os tempos da criação da Casseta Popular, na faculdade de engenharia da UFRJ. Aproveite enquanto as edições extras estão liberadas para não pagantes. Depois, você decide se apoia para continuar lendo ou se fica só nas edições gratuitas, que eu leio sempre.
O QUE EU APRENDI
O site da BBC News Brasil traz uma entrevista com o linguista Caleb Everett, nascido nos EUA mas com a inf}ancia passada na Amazônia. No papo sobre seu novo livro, Os Números e a Nossa Formação: A Contagem e o Curso das Culturas Humanas, ele fala de como as variações linguísticas mostram que as concepções sobre quantidades e até mesmo o tempo podem ser diferentes. A frase “Na segunda-feira passada eu corri por meia hora, como eu faço todas as semanas”, por exemplo, contêm várias definições de tempo que não fazem sentido para algumas civilizações, como as que não usam relógios ou calendários. Ele conta que existem povos que têm apenas dois tempos (o futuro e o não-futuro), enquanto outros possuem até seis.
O QUE EU ESCREVI
O Teu Futuro é Duvidoso
Uma coisa que rende uma interessante história é o bom e velho futuro distópico. Aquele em que as coisas saíram bem diferentes do que previa quem vê o copo sempre meio cheio, tendo que lidar com um cenário em que nem copo existe mais. O legal desse exercício de imaginação é que o distópico para uma pessoa pode até ser utópico para outra. Vai depender sempre do ponto de vista. É como eu uma vez escrevi em uma rede social:
“Utopia futurista: trabalho remoto, ruas vazias com muitos drones e algumas motos levando as compras que você fez pela internet.
Distopia futurista: trabalho remoto, ruas vazias com muitos drones e algumas motos levando compras feitas pela internet. Você pilota uma delas.”
De todas as distopias já imaginadas, no meio de cataclismas ecológicos, guerras nucleares e robôs no poder, duas se destacaram por mostrar mundos que não precisaram de um grande evento para se concretizar e trazer profundas mudanças em nossas vidas. São os livros 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O primeiro fala de uma sociedade oprimida por um governo totalitário, constantemente vigiada pelo poder, que altera a História e a verdade para controlar os cidadãos. O segundo traz uma população que, no meio de evoluções tecnológicas que alteram até a forma como nascemos, encontrou a “felicidade” em uma droga que não traz efeitos colaterais para a saúde, deixando de se preocupar com os governantes.
Um tempo atrás, comecei a ver pela internet imagens opondo os dois livros, chamando a atenção sobre as diferenças entre os dois futuros. Coisas assim:
O ápice foi um quadrinho com os pormenores dessas duas visões de mundo, mas como se fosse uma disputa descarada entre os autores, dando uma certa preferência às previsões de Huxley. Rinha de distópico! Fiquei meio aborrecido, porque embora goste de Admirável Mundo Novo, tenho 1984 como livro favorito. Aí vi no pé da página que os desenhos foram inspirados no livro Amusing Ourselves to Death, de Neil Postman. Seu ensaio é dedicado a provar que Huxley deu uma lavada em Orwell em termos de predição, já que nossa sociedade caminha visivelmente para algo parecido com o que descrevia em sua obra. Levei um tempo mas acabei admitindo a força dessa teoria. Se você pensar bem, até o ponto mais temido de 1984, o Grande Irmão, virou um conceito divertido em um programa de TV na nossa sociedade do espetáculo. Ser vigiado é diversão no Big Brother!
No entanto, ultimamente venho reconsiderando a derrota de Orwell. Se Francis Fukuyama passou a ser visto mais recentemente como um cara exagerado ao decretar o fim da História, acho que podemos também bater no ombro do tal do Postman. A ascensão da extrema direita, a crise da democracia e a força de algumas repúblicas totalitaristas parecem fazer a balança pesar de novo para 1984. E não só. As fake news caindo nas graças tanto de governos como da população me fazem pensar muito nas reedições da História que lemos em 1984, com a realidade sendo revista sucessivamente de forma natural, como se tudo fosse questão de narrativa. Vou ficando cada vez mais animado com meu livro favorito levantando, sacudindo e dando a volta por cima. Sim, Huxley. Não perdemos, ainda estamos na luta. Talvez a gente nem vença, na verdade. Pode ser que o melhor seja um empate. Que tal se chegarmos a uma distopia com o “melhor” de cada um dos mundos? Totalitarismo com uma sociedade anestesiada. Acho que o acordo é o caminho. Afinal, já estamos cansados de polarização, não é mesmo?
Adorei sua rinha de distopia. Bom texto. Sua comparação entre utopia e distopia foi um ponto alto. 🙂
Ótima dica a da newsletter do Beto Silva, e sobre a alimentação, você já me ganhou no transplante de fezes. Say no more.