A melhor memória do mundo
Ele só queria vencer o campeonato mundial, mas encontrou algo mais
Josias não lembra quando foi a primeira vez que estabeleceu essa meta, o que era um pouco vergonhoso, exatamente pela natureza do objetivo: vencer o Campeonato Mundial de Memória, realizado anualmente desde 1991, com diferentes países como sede. Até achou que o sonho ficaria mais fácil a partir de 2017, quando houve um racha na organização, com duas ligas promovendo suas próprias edições da competição. Se não vencesse pela IAM, poderia ganhar na WMSC. Quem sabe até um dia unificaria os cinturões, como um grande boxeador. Em vez de diretos, cruzados, ganchos e esquivas, seria conhecido pelos desafios de memorização de sequências de números, cartas de baralho, listas de palavras aleatórias e datas históricas.
Na falta de campeonatos brasileiros, Josias teve que se contentar em começar com as quebras de recordes nacionais, auditadas por uma organização especializada no registro dessas marcas. Escolheu como primeiro desafio a categoria “maior memorização de datas comemorativas”. Seu plano era guardar 400 dias importantes do calendário e bater o recorde anterior com uma pequena folga. Para se preparar, abandonou o cargo de professor de História na escolinha do bairro, onde estava trabalhando há apenas três anos. Não foi uma decisão fácil largar seu primeiro emprego, que havia conquistado quando voltou à cidade natal, depois de se formar na capital. O que ajudou foi a certeza de que conseguiria o trabalho de volta, talvez até com um aumento, depois de atingir a glória com o recorde de memorização. Os pais não gostaram muito da ideia de bancar suas despesas por um ano, mas Josias sabia que o orgulho de ter um recordista em casa compensaria tudo, e garantiria posteriormente mais um período de ajuda financeira, incluindo a compra da passagem para Instambul, onde se daria o próximo campeonato mundial.
Estava de volta a Curitiba para o desafio, auditado pelo diretor da instituição registradora de recordes. Na sala do hotel alugada para o evento, aguardou o início do cronômetro e pôs-se a enumerar as datas para a pequena plateia de membros da organização, aficionados por memorização e ex-colegas de faculdade, que foram matar as saudades e prestigiar o amigo do interior. Começou com a chegada de Cabral às nossas terras, passou pela fundação de algumas cidades, anunciou nascimentos de figuras que se tornariam históricas (voltando a elas para declarar suas mortes), embrenhou-se em revoltas populares, foi sentindo o peso de várias crises políticas e acabou falhando em um dos muitos golpes militares tentados em nosso território. Tentou se corrigir, mas ficou sem chão. Hesitou por alguns minutos e ensaiou uma volta, com algumas datas do Estado Novo. Conseguiu enumerar muitas outras até chegar à posse do atual presidente, que havia firmado como ponto de chegada. Abriu um sorriso que murchou imediatamente ao olhar o rosto do diretor da prova. Ele tinha falado apenas 350 datas. Josias sentiu todo o peso da nação desabar sobre sua cabeça. Só conseguiu balbuciar uma frase: “preciso de uma casa maior”.
Acontece que Josias usava o método do Palácio da Mente, no qual a pessoa imagina um lugar bem familiar e vai guardando informações em quartos, salas e banheiros, e dentro de armários, gavetas e caixas, debaixo de tapetes e atrás de quadros. Na hora do desafio, o memorizador vai percorrendo a casa e vislumbrando os pontos em que deixou as palavras, os números ou, no caso de Josias, as datas. Diante do fracasso, ele só conseguiu culpar a casa humilde dos pais. A solução seria se mudar mentalmente para um lugar maior: a fazenda de seu avô, que não pertencia mais à família. Mas isso não foi um problema. O atual proprietário das terras do falido ancião permitiu que Josias passasse um dia inteiro lá, relembrando os cômodos, os caminhos e até os esconderijos. Desta vez, falta de espaço não seria desculpa.
No ano seguinte, o diretor da organização estava de volta ao mesmo hotel de Curitiba para vê-lo, comovido pelas súplicas por uma nova chance. Desta vez, os colegas de faculdade não compareceram. Preferiram não ter um possível novo constrangimento. Josias provaria que estavam enganados, privando-se de um grande momento, deixando de testemunhar uma data memorável. O moço do cronômetro deu o sinal e Josias começou sua jornada. Abriu a porta da casa grande da fazenda e deu de cara com o enorme salão. Lá pegou todas as datas do período colonial. Foi até outros cômodos e encontrou marcos de outras fases de nossa História. Então, encaminhou-se até o quarto em que se hospedava quando visitava o avô. Abriu o armário e encontrou uma caixa de que não se lembrava. Tirou a tampa e encontrou uma coleção de livros que fez seus olhos brilharem. Na capa de cada um, estava escrito “Para Gostar de Ler”. Josias não resistiu e passou a folhear um deles. Deu de cara com uma crônica de Rubem Braga. Achou que tinha tempo de ler pelo menos o comecinho. Quando deu por si, já tinha chegado ao ponto final. Então leu outra, de Paulo Mendes Campos. Por que não ler mais uma, de Carlos Drummond de Andrade?
Josias não sabia por quanto tempo estava relendo aqueles livros meio mofados, que fizeram sua cabeça quando criança, um presente de segunda mão de seu pai. Era sua diversão nas visitas à fazenda, que tinha leite fresquinho mas carecia de videogames e internet veloz. Mas não foi para isso que tinha ido à casa do avô. O motivo era outro. Qual mesmo? Josias olhou em volta e viu uma janela fechada. Tentou abrir. Não conseguiu. Pegou um canivete na gaveta e foi forçando uma das vigas de madeira, que acabou se soltando. Pela fresta, olhou para o ambiente iluminado que estava do outro lado. Não entendeu por que seus pais estavam chorando, ao lado de uma cama. Um homem vestido como médico se aproximou e falou que ainda havia esperanças. O doutor esperava que o rapaz despertasse em uma semana, muito provavelmente sem sequelas. Que bom. Josias tinha tempo para ler mais uns livros.